Mesmo quando há uma disfunção do aparelho urinário ou do sistema de excreção, os casos de enurese e encoprese resultam de uma articulação entre problemas emocionais e orgânicos. Essa é a avaliação da psicóloga e psicanalista Márcia Regina Porto Ferreira, estudiosa do assunto. De acordo com ela, “o fator psíquico está presente para dar significado à causa orgânica” desses transtornos.
Segundo a psicanalista, considerando a frequência dos casos entre crianças e adolescentes, “enurese é mais expressivo e encoprese é mais preocupante”.
A enurese (urina) está relacionada com o sentido dado pela criança às relações de prazer e de desprazer na troca de afetos com as pessoas.
A encoprese (fezes) é um chamado mais “radical”, mais incômodo, está mais ligado a aquilo que causa horror e repulsa.
Culturalmente, a “convivência com o xixi é mais fácil, mais aceitável do que com o cocô. A urina chama atenção, é importante verificar. As fezes, é para não ter dúvida de que alguma coisa mais grave está sendo denunciada”, afirmou.
Nos dois casos, os transtornos são diagnosticados quando há alguma frequência nos episódios de xixi e cocô nas calças, seja durante o dia ou à noite. Até as famosas “escapadinhas”, quando a criança está brincando e não quer parar para ir ao banheiro, merecem atenção, mesmo que não sejam tão frequentes.
A psicanalista disse que a tolerância é maior quando a criança está dormindo, pois o controle diurno é mais simples e adquirido antes do noturno. O controle automatizado, exigido durante o sono, é mais demorado. E para não sobrecarregar a criança, é bom que se tomem medidas que possam ajudá-la, como não oferecer líquido perto da hora de dormir. Em situações de maior dificuldade, as mães podem levar a criança ao banheiro durante a noite para que, aos poucos, ela aprenda a controlar.
Encerrado o período de treinamento, quando a criança já adquiriu o controle esfincteriano diurno e noturno, ou quando esse processo é muito esticado, os episódios de xixi ou cocô na calça começam a denunciar problemas. A urina e as fezes fazem parte dos recursos de linguagem infantil, servem para dar sinais de que alguma coisa não vai bem com a criança.
Nem sempre os casos de enurese e encoprese estão relacionados a problemas desenvolvidos durante esse processo de aquisição do controle esfincteriano. O xixi e o cocô são impregnados de muitos significados e as dificuldades relacionadas a eles podem ter origem anterior ou posterior ao período de retirada das fraldas. Em qualquer momento da vida da criança, esses transtornos no controle dos esfíncteres podem aparecer. Mas os treinamentos muito severos, sem o carinho que essa passagem merece, costumam deixar sequelas.
Limites
Ensinar a criança onde e quando fazer xixi e cocô faz parte do cardápio de limites que os pais precisam apresentar para as crianças. Para a psicanalista, como colocar limite com amor “é a dúvida que todo mundo precisa ter e carregar para o resto da vida”. Segundo ela, ser firme sem ser violento não é fácil, mas, é extremamente necessário. “Ser mãe não é fácil. O humano é complicado! Mas é preciso ter a convicção de que o limite é absolutamente fundamental”, afirmou.
Segundo a psicóloga, crianças com enurese, em geral, insistem em se manter em um estágio primário, regredido e dependente. Mas também existem aquelas ”mais malandrinhas”, que manipulam e garantem a presença da mãe por meio do xixi. De qualquer forma, são crianças que não atingem o estágio de desenvolvimento psíquico próprio da idade e não conseguem se interessar por outras coisas, se preparar adequadamente para novas aquisições.
Abrigos
Marcia Porto Ferreira trabalha com crianças abrigadas e o número de casos de enurese e encoprese entre elas é muito grande. Segundo a psicanalista, a situação nos abrigos é uma evidência importante de como fezes e urina se prestam para mostrar a precariedade psíquica das crianças.
Os transtornos atingem com frequência crianças de até 10 anos de idade. São crianças que denunciam, dessa forma, situações de desamparo muito grande e até de pânico. “Em situação de pânico, até adulto faz xixi nas calças!”, afirmou.
A psicanalista explicou que as crianças vítimas de negligência ou violência foram fragilmente estruturadas psiquicamente porque não tiveram um amparo consistente no ambiente familiar, não foram cuidadas nem amadas.
Segundo ela, quando uma criança de 10 anos fica brincando até fazer cocô nas calças, é porque vive em total falta de sintonia com o próprio corpo. Se um menino permanece indiferente aos sinais que recebe do corpo, não consegue dar uma resposta que crianças tão pequenininhas já conseguem, é por que algo muito importante está acontecendo.
Pum
Marcia Porto Ferreira disse que é bom prestar atenção até nas crianças que soltam muito pum por aí. “O próprio peido público, dá pra se ligar que tem uma agressão aí!”. Segundo ela, tudo o que gira em torno das fezes, que é da ordem do nojento, pode demonstrar como cada um lida com o desagradável. Por mais que vire uma brincadeira, essa pode ser uma maneira de a criança colocar para fora as suas contrariedades e motivações pouco amorosas. Os adultos também!
Marcia Regina Porto Ferreira é psicóloga e psicanalista, coordenadora do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae e autora do livro “Transtornos da Excreção: Enurese e Encoprese”.