A psicanalista infantil explicou que a relação da criança com as fezes e com a urina é prazerosa, é algo muito importante para ela. “Quando ela deixa de fazer cocô e xixi na hora que ela quer, ela deixa de ter algum prazer em relação ao seu cocô e ao seu xixi para ter alguma satisfação que ela dá para o adulto. É como se ela cedesse algo muito precioso pra ela, um prazerzinho particular corporal que ela tem com o seu xixi e o seu cocô, em retribuição a algum compromisso que naquele momento ela está prestando ao adulto”.
Por ser um passo tão importante, o treinamento para abandonar as fraldas deve ser feito com muito amor, carinho e paciência, respeitando o tempo da criança. “Ela realmente precisa processar dentro dela a necessidade de renunciar a esse prazerzinho porque senão ela só faz por temor e não por amor”, explicou.
Segundo a psicanálise, nós não nos lembramos, mas toda criança tem prazer com as fezes e a urina. “De certa maneira, a gente ainda tem, mas muito censurado. O prazerzinho de fazer cocô e xixi todos nós conservamos, mas a criança tem um particular prazer corporal e, aos poucos, ela vai deixando de ser corpo para transferir o que ela faz no corpo para outros objetos. Ela troca, e troca incentivada pela solicitação do adulto”, explicou.
Márcia Porto Ferreira afirmou que a criança renuncia ao trocar algo só dela para negociar com o mundo. “Ela vai negociar o cocô e o xixi dela para não fazer mais nem a qualquer hora, nem em qualquer lugar, nem de qualquer jeito. É uma negociação. Quando ela começa a negociar, ela sai do reino animal, e isso quem implanta é o adulto”.
Ela lembrou os ensinamentos de Freud para explicar que a criança entende a urina e as fezes como um presente oferecido ao adulto. “É o primeiro presente que a criança dá para o adulto. É algo valioso, que ela entrega como se fosse um presente para poder fazer parte do mundo humano e ter alguma negociação amorosa. Ela troca um objeto de amor por outro objeto de amor. Quando a criança renuncia a esse prazer por amor ao outro, ela cede e quando esse controle de esfíncter for feito de um jeito muito severo, ela obedece, é diferente”.
A psicóloga faz questão de ressaltar que não é apenas uma questão comportamental. Esse treinamento terá repercussão na sua forma de relacionamento com as pessoas ao longo de toda a sua vida. “É uma questão de organização do psiquismo. Se as fezes e a urina têm um valor amoroso para a criança, o jeito que ela vai tratando na troca, na negociação com o outro, é como ela vai se preparando para as negociações amorosas em geral”.
Para Márcia Porto Ferreira, esse ritual usado pela escola fere o princípio básico da privacidade. “É fundamental. A gente não fala privada? O que é da ordem dos esfíncteres, sempre deve ser tratado na ordem do privado. A gente vai exatamente encaminhar a criança pra ela cuidar do seu cocô e do seu xixi longe dos olhos, longe do público. Então, esse ritual não tem nada a ver com a nossa civilização. É uma questão de cultura, na nossa cultura, a gente faz cocô de porta fechada”, simples, não?
Mas não é preciso uma aula de psicanálise para ensinar a criança a usar o banheiro. Segundo ela, em cada fase do desenvolvimento, a criança está adquirindo modelos de relacionamento, por isso, o abandono das fraldas deve ser preparado da maneira mais natural possível. Esse aprendizado, faz parte da vida dela.
“A criança aprende a se relacionar no mundo a partir do corpinho dela. Então, é muito complexo. Muito mais complexo do que vamos resolver logo isso. Não precisa fazer nenhum drama. É lógico que é preciso estimular, demandar, solicitar pra ela, mas amorosamente. Como a maioria das mães faz: compra o peniquinho, a privadinha, vai fazendo brincadeirinhas para, gradativamente, ir trocando as fraldas por um controle. A maioria das mães e das avós sempre fez assim”, ressaltou.
O controle dos esfíncteres é um processo para ajudar a criança a se despedir do que ela entende como parte do corpo dela. Segundo a psicanalista, a criança faz essa concessão ao perceber que aquilo que o adulto quer dela serve para organizá-la, para prepará-la a pertencer a um coletivo.
A psicóloga considera o treinamento do controle dos esfíncteres uma função materna e paterna, mas lembra que hoje em dia os cuidados com as crianças são de responsabilidade de muitos outros personagens.
“A função materna e paterna está distribuída para varias pessoas: mães, pais, avós, babás e a escola. A gente tem que constatar que as coisas estão assim. Não terá prejuízo, se a pessoa que cuidar disso fizer de um jeito adequado. Que os pais não estão ocupando o lugar que deveriam estar ocupando, é verdade. Mas fico preocupada com um discurso nostálgico de pais que eram diferentes. Saudosismo não adianta muito. É desejável que pais possam tomar o seu lugar. Não é imprescindível, viu? As crianças sobrevivem apesar dos pais, ou não”, avaliou.
Ela considera privilegiadas as crianças que têm pais que exercem de fato a função materna e paterna. Mas acha impossível que na sociedade atual, o treino para o controle dos esfíncteres seja feito sem a participação de outras pessoas ou da escola. No entanto, ressalta que os pais deveriam fazer parte desse processo, e não delegar a outros uma tarefa tão importante.
“É muito desejável que os pais possam ter as suas funções muito bem asseguradas. Mas os pais hoje em dia estão mais interessados em posarem de pais muito amigos e muito legais do que pais educadores. A escola está num momento muito difícil porque está sendo delegado a ela o papel de função paterna e materna”, lamentou.